Para o autor belga Frederic Laloux, as organizações que têm se reinventado são aquelas que evoluem em suas práticas de autogestão e autonomia das equipes, desenvolvem culturas organizacionais que acolhem todas as diferenças e produzem um ambiente seguro para que as pessoas e os grupos floresçam em sua potência e sejam acolhidos em seus limites, além de serem organizações que dirigem suas estratégias para efetivamente responder às necessidades socioambientais.
Uma das premissas sustentadas em seu livro, Reinventando as Organizações, é a de que a qualidade dos ambientes organizacionais depende diretamente da qualidade das conversas nesse ambiente. E essa qualidade tem a ver, sobretudo, com boa escuta e espaços seguros para manifestar-se de forma autêntica e estabelecer acordos claros.
A crença é compartilhada por Cris Chiófalo, sócia da Pacto. Mediadora e facilitadora de processos de Comunicação Não-Violenta e Círculos Restaurativos, a especialista tem se aperfeiçoado na prática da Escuta Empática e da Transformação de Conflitos ao longo dos últimos vinte anos.
Em entrevista, a idealizadora do curso Conversas Regenerativas, formação voltada a capacitar pessoas e equipes para a promoção de ambientes organizacionais mais saudáveis, dialoga com o cenário atual de polarização que marca a sociedade brasileira.
Em 2019, uma pesquisa mostrou que 32% dos brasileiros consideravam que não valia à pena conversar com quem pensava diferente quando o assunto estava inserido no contexto político. Além disso, 40% disseram se sentir mais confortáveis junto de pessoas que têm pensamentos similares. O estudo revelou que a polarização no Brasil atingiu um nível elevado de intolerância que supera a média internacional de 27 países.
A partir da visão de que as tensões cuidadas geram transformação e inovação, Cris fala sobre o papel do diálogo dentro da cultura organizacional regenerativa.
Confira.
Como você avalia o papel das mídias sociais e da comunicação de forma geral no debate sobre diálogo?
Cris: O formato das mídias sociais é palco de debate e não promove diálogo. Não é, definitivamente, uma ferramenta dialógica porque as redes sociais contribuem para que eu vá cada vez mais fantasiando e estereotipando acerca do outro: ou ele é isso ou é aquilo. E para conhecer a complexidade de cada pessoa, é preciso conversar, se aproximar, entender o que está por trás das palavras. E as mídias sociais pouco contribuem nesse sentido, ou ainda, quase nada.
Em tempos de polarização política, fake news e ataques à liberdade de imprensa e expressão, que papel ganha o diálogo?
Cris: Quando penso em polarização política, fake news e ataques à liberdade de imprensa, a primeira imagem que me vem é a de um verdadeiro campo de batalha: muros altíssimos erguidos e pessoas separadas, assustadas, ameaçadas, fechadas e desinteressadas, inclusive, pelo que tem atrás desses muros.
Nesse cenário, o jogo que opera é o de quem tem razão. Vivemos em um mundo atravessado pelo paradigma do êxito: se eu estou certa, o outro está errado. Esse mundo só funciona se eu tiver poder e o outro me obedecer.
O perigo é que a solução mais rápida para um mundo polarizado é que a ordem seja restabelecida o quanto antes. Mas se estivermos imersos em uma cultura que não acolhe o conflito ou que não o vê como uma possibilidade de transformação, podemos fantasiar que alguém, com uma única solução, será capaz de instaurar a ordem perdida, correndo o risco de cairmos no totalitarismo, o que nos afasta ainda mais de um mundo democrático.
Nesse sentido, o diálogo serve não para abafar o conflito e as nossas diferenças, mas para que possamos nos aproximar, enxergar, cuidar e transformar as nossas diferenças. Ele nos permite preservar a democracia, um lugar possível para todos, sendo, portanto, uma ferramenta de cuidado e inclusão, uma possibilidade de sairmos do confronto e de nos aproximarmos da multiplicidade que somos.
Bernardo Toro, educador colombiano, fala muito sobre o paradigma do cuidado e a expressão desse paradigma é a busca de relações ganha-ganha, saber conversar para escutar as diferenças. Como diz Leonardo Boff [teólogo, escritor, filósofo e professor universitário brasileiro], o cuidado já não é mais uma opção: ou aprendemos a cuidar de nós, dos outros e do lugar onde vivemos ou vamos desaparecer. E o cuidar não é fazer o que é bom só para mim ou só para o outro, mas é considerar a mim e o outro ao mesmo tempo e isso dá muito trabalho. Quem cuida sabe.
Diálogo e conversa regenerativa são sinônimos? Qual é o papel do diálogo dentro da cultura organizacional regenerativa? E quem faz parte dessa dinâmica?
Cris: No prefácio do livro O Cálice e a Espada, o escritor Humberto Maturana resgata a etimologia da palavra conversar, que significa dar voltas juntos, versar sobre um mesmo tema. Olha que movimento bonito! Uma pesquisa com o outro. Não é uma imposição. Você entra nessa conversa aberta a se transformar também. Então, o diálogo é o principal ingrediente para conversas regenerativas. Para incluir a diversidade nas interações, para considerar que eu sou diferente de você, precisamos estar abertos, nos conectar, e o diálogo é o que vai garantir essa conexão entre nós, essa presença para nos encontrarmos. Dar voltas juntos, pensar juntos, construir e cuidar juntos do que é fundamental para mim, para você, para o outro, para a natureza em que estamos inseridos, para o lugar em que vivemos.
A cultura organizacional regenerativa olha para a evolução e o cuidado do indivíduo e da pessoa dentro da organização e dessa organização dentro do mundo. E esse mundo também não está dissociado do meio ambiente. Então, pensar em ações que promovam uma cultura mais regenerativa é incluir nas ações e estratégias todas essas dimensões: eu, você, nós, os outros, a organização, o mundo, o meio ambiente. A organização, então, passa a ser uma plataforma de bem-estar e desenvolvimento para esse indivíduo. Até aqui, parece lindo e simples, mas precisamos considerar nossas diferenças, o que é importante para mim, para nós, e considerar que, constantemente, precisaremos de recursos para lidar com o conflito, que, lembrando, não é algo ruim, mas é algo a serviço da evolução e das transformações, se for bem cuidado.
Que habilidades e competências pressupõem uma conversa regenerativa? E como essa ferramenta contribui para o desenvolvimento organizacional direcionado a propósito e a impacto socioambiental positivo?
Cris: É urgente invertermos a lógica das nossas interações, oferecendo primeiro os ouvidos para depois falarmos. Ao estarmos disponíveis para uma escuta aberta, podemos nos aproximar do universo do outro e escutar com curiosidade o ponto de vista alheio às nossas crenças e maneiras de interagir para também apresentar o que pensamos. Isso exige uma energia imensa para se manter firme ao lado do outro. Não é um estado relaxado, como muitos pensam. Com a diferença que, depois de todo esse esforço, no final, todo mundo sai mais fortalecido, podemos evoluir juntos.
Adélia Prado [poetisa, professora, filósofa, romancista e contista brasileira] fala que o diálogo começa nos ouvidos. Olha que interessante: eu te escuto para te enxergar! Enxergar para além dos rótulos e, quando eu faço isso, me encontro com ele e com ela. Sem remover essas barreiras, não é possível promover o encontro. No entanto, do mesmo jeito que eu trouxe a imagem do campo de batalha no início desta conversa, não gostaria que a imagem do diálogo fosse aquela de mim sentada em uma mesa, tomando café e batendo um papo super leve com você. Isso até pode acontecer com o tempo, mas evoluir para o estado dialógico requer disposição, abertura e treino constante. É necessário adquirir ‘musculatura’ para escutar o outro e também para se mostrar autenticamente nas relações. Sem rabos presos.
É possível destacar alguns dos desafios das organizações em relação a esse assunto e apontar caminhos para superá-los?
Cris: O maior desafio é construir essa cultura que acolhe e transforma a tensão porque entende que nela reside o nosso maior poder de inovação. Porque é um modo de trazermos, todos, nossas visões e propostas. Ao trazer esse recurso dialógico, estamos cuidando das tensões, dos conflitos, em suma, da diversidade. Portanto, criar espaços e recursos, intencionalmente, para processar essas tensões é, ao mesmo tempo, um desafio e uma oportunidade de vivermos em um mundo em que todos tenham espaço.