Partindo da premissa de que o compromisso antirracista não é uma responsabilidade exclusiva das pessoas negras, em 2021, a Pacto deu início à construção de sua política de equidade racial, que contempla um conjunto de práticas e ações articuladas para garantir o antirracismo e a equidade racial em diferentes esferas de atuação da organização.
O processo envolveu encontros de aprendizagem entre os associados e membros da equipe sobre conceitos básicos e tópicos fundamentais no tema, como raça e racismo no Brasil, estudos críticos sobre a branquitude, interseccionalidade e racismo institucional e estrutural.
Nomeada guardiã de equidade racial das ações internas e externas da Pacto, Beatriz Mendes Chaves, associada e coordenadora executiva da organização, esteve à frente da iniciativa junto à pesquisadora Lívia Guimarães e conta como o processo foi importante para alinhar os diferentes níveis de compreensão, conscientizar o grupo sobre a necessidade de refletir criticamente sobre o tema e iniciar um conjunto de ações coordenadas para o combate ao racismo.
“Para não esvaziar uma iniciativa tão importante, apenas propondo uma lista de boas práticas a ser seguida pelo grupo, optamos por realizar essa jornada de aprendizagem e engajamento no tema. Foi um processo complexo e cuidamos para criar uma atmosfera de aprendizagem e confiança. Também cuidamos da construção de uma visão institucional coletiva sobre o tema, para termos o comprometimento comum em torno de todas as ações de equidade racial. Com esse esforço, conseguimos mapear providências antirracistas em diferentes áreas, extrapolando o aspecto da gestão de pessoas e passando pela forma como conduzimos os projetos, a comunicação e até a nossa gestão interna”, comenta.
Mestranda em Ciência Política e bacharela em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo (USP), Beatriz tem se dedicado a estudar o processo eleitoral brasileiro com foco no financiamento de candidaturas femininas e negras. Ela também atua na disseminação de educação financeira para a população negra e periférica como coordenadora de projetos sociais da NoFront – Empoderamento Financeiro.
Em entrevista, ela compartilha desafios e aprendizados de sua trajetória no tema e da jornada junto à Pacto que podem contribuir com o debate sobre promoção de equidade racial no contexto das organizações. Confira.
Pacto: O que é ser uma ‘guardiã’ da equidade racial nos processos internos e externos da Pacto?
Beatriz: Esse papel surgiu a partir da necessidade de abordar a equidade racial em diferentes esferas que permeiam a Pacto. É um papel de coordenação e liderança de um processo que é sustentado, na prática, por todas as pessoas da equipe. Quando abordamos o tema da questão racial no âmbito organizacional, geralmente, nos precipitamos em achar que se trata apenas de contratar mais pessoas negras, quando, na verdade, apesar disso ser importante, o compromisso com o combate ao racismo nas organizações precisa ir além de ter um time diverso, nos conscientizando de que assim como o racismo opera no nosso cotidiano e se sustenta em pequenas práticas, o antirracismo também deve ser assim.
Então não basta apenas levantar a bandeira da diversidade, precisamos ser ativamente antirracistas e repensar nossas práticas à luz de reflexões sobre como o racismo estrutural e institucional operam e quais são os efeitos disso na vida de pessoas negras e não-negras. Estamos falando de um tema urgente, transversal, complexo e delicado.
A iniciativa da Pacto de me nomear para liderar esse aspecto na organização dialoga com esse desafio. Eu já trabalho e estudo a questão racial no Brasil há alguns anos e vejo esse papel como o início de um percurso mais profundo de transformação e reflexão crítica que exige esforço e dedicação por parte de todas as pessoas envolvidas. Afinal, o compromisso antirracista precisa ser coletivo, em primeiro lugar, sem se tornar responsabilidade exclusiva das pessoas negras.
Pacto: A partir da sua contribuição com a construção da política de equidade racial da Pacto, o que você destacaria em termos de desafios e oportunidades? É possível apontar inspirações a partir desse processo que podem servir a outras organizações, sejam elas empresas ou organizações da sociedade civil?
Beatriz: O esforço que fizemos foi de mostrar que em todas as esferas é possível tomar providências antirracistas e pensar raça, gênero e questões comumente relacionadas à meritocracia em um contexto de desigualdade racial. Isso com certeza pode inspirar diversas organizações e empresas. Mesmo se focarmos na necessidade de contratação de pessoas negras, por exemplo, é preciso ir além da formalidade e pensar como acolher essas pessoas em uma cultura organizacional que pode estar reproduzindo diversas desigualdades e violências raciais – e, portanto, precisa ser mudada. Justamente pela complexidade de tratar algo tão enraizado na sociedade, enxergo como principal desafio a construção dessa visão holística, atenta e comprometida, já que, no Brasil, o debate sobre racismo é compulsoriamente negado e deslegitimado.
Para pessoas não-negras é muito mais cômodo ignorar o assunto e não mexer numa gama de privilégios, mas é preciso aceitar e entender que o racismo não é problema do outro, é um problema coletivo e isso tem efeitos concretos no nosso cotidiano. Esse processo na Pacto foi cuidadoso em muitos sentidos pois foi permeado por co-responsabilidade. Enxergo a partir dele a oportunidade de ancorarmos um debate mais sério, realista e efetivo sobre equidade racial na forma e nos temas que trabalhamos. Algo mais prático, que não só avança no discurso, mas também é acompanhado de práticas críticas e reflexivas.
Pacto: Como a promoção da equidade racial dialoga com a missão da Pacto de ajudar outras organizações a gerarem melhores resultados naquilo a que se propõem?
Beatriz: Quando falamos de racismo, na prática, para além da desigualdade e da violência, estamos falando sobre relações de poder. Sendo assim, lutar por equidade racial é, antes de mais nada, lutar contra as assimetrias de poder causadas pelo racismo. Precisamos ter pessoas negras, principalmente mulheres, em cargos de liderança e altos níveis hierárquicos. A Pacto pode contribuir em todo seu ecossistema ao ancorar um posicionamento antirracista como premissa de suas intervenções que, por sua vez, também costumam ser transversais.
Se estamos falando da construção de uma sociedade mais justa, igualitária e regenerativa, impreterivelmente isso passa pela equidade racial. Podemos encontrar argumentos morais, éticos, filosóficos e até mercadológicos para respaldar o nosso dever de colocar o tema ‘na mesa’ sempre que possível e cuidar para que isso não perca a prioridade ao longo dos processos que conduzimos. Isso exige comprometimento. Podemos olhar para dentro, já que a equipe precisa cada vez mais se apropriar dessas discussões e práticas para conseguir levá-las para o mundo, e também para fora, já que o nosso compromisso antirracista não é suficiente quando limitado a nós mesmos, então precisamos conseguir levar isso com força ao longo do nosso trabalho com outras organizações. É um processo evolutivo em que todo mundo ganha.
Pacto: A partir dos projetos da Pacto nos quais você está envolvida, é possível compartilhar boas práticas, recomendações ou sugestões relacionadas à agenda da promoção da equidade racial?
Beatriz: Temos muitas coisas acontecendo em paralelo, mas acho importante ressaltar o caso da Simbiosc, como exemplo. Desde a concepção do que seria uma comunidade de aprendizagem do terceiro setor, a questão racial foi colocada como transversal e não-facultativa. Isso foi muito importante para termos o tema como prioritário em todas as jornadas de aprendizagem e consolidarmos a posição de que o racismo pode – e deve – ser pensado em diferentes esferas e temas, não é algo a ser combatido em uma única ação.
Sendo assim, o antirracismo foi pautado desde o processo seletivo com proponentes das jornadas até o conteúdo que está sendo trabalhado para o desenvolvimento das organizações da sociedade civil selecionadas, nos temas de Design Organizacional, Estratégia e Gestão de Pessoas. Ainda temos muito o que avançar, mas acho que esse é um primeiro passo importante: não isolar o tema, buscar entendê-lo e encará-lo de frente em suas diferentes formas e manifestações. Ficar em silêncio ou esperar passivamente que essas questões surjam e se resolvam é um dos grandes mecanismos de perpetuação do racismo e vai no caminho oposto do nosso compromisso.