“Estamos vivendo um momento desafiador como sociedade, com problemas de alta complexidade que nenhuma organização conseguirá resolver sozinha. Os próprios órgãos governamentais, com o tamanho e o orçamento que têm, não darão conta individualmente dos desafios sociais, ambientais e econômicos do país.”
A reflexão é de Sergio Sampaio, sócio-fundador da Pacto. Em entrevista, o especialista com mais de 15 anos de experiência em facilitação de processos de planejamento estratégico e desenvolvimento organizacional junto a diversas organizações públicas e da sociedade civil, conta como a Pacto tem olhado para a importância da atuação em rede e em colaboração, algo tão singular do campo da sociedade civil organizada que a pandemia deixou ainda mais evidente.
A partir da trajetória da Pacto no apoio ao desenvolvimento das organizações para torná-las capazes de produzir impactos socioambientais significativos, Sergio destaca a necessidade de que reconheçam seu papel dentro de um ecossistema que atua em prol de um mesmo objetivo, sejam elas sociais, governamentais ou empresariais.
“Isso é atuar em rede, o que não significa necessariamente atuar em colaboração: ter clareza da sua contribuição essencial dentro do ecossistema e entender que outras organizações também cumprem papéis específicos fundamentais. Sem esse entendimento, elas correm o risco de desperdiçar muito de sua energia.”
Confira a entrevista completa.
Pacto: Qual é a diferença entre atuar em rede e em colaboração?
Sergio: Atuação em rede pressupõe que as organizações compartilhem, antes de mais nada, uma narrativa estratégica, um olhar para a teoria da mudança para a transformação que desejam. É difícil eu me juntar com uma organização para trabalhar um desafio na área da educação, se eu acredito que o caminho é privatizar a educação e a outra organização acha que não tem que ter nenhuma escola privada, tem que ser tudo público.
Esse alinhamento não é difícil. Nos diversos espectros ideológicos, encontramos pessoas que querem uma educação melhor para o Brasil ou uma saúde melhor para o país. É raro alguém que não concorde com a transformação em um nível tão macro. Onde nos percebemos diferentes é na hora do como, da escolha das estratégias para chegar lá. Então, para que as organizações possam atuar em colaboração, elas precisam estar alinhadas nas narrativas estratégicas de transformação.
Pacto: Quais são os desafios para que organizações atuem em colaboração?
Sergio: Em primeiro lugar, a organização precisa se abrir para o diálogo na hora de fazer o seu próprio planejamento. Na Pacto, chamamos essa etapa de ‘janela para o mundo’ ou de ‘vozes do campo’. É quando colocamos a organização para entrevistar uma série de atores importantes daquele campo no qual ela atua para que eles possam dizer aonde entendem ser mais importante a atuação dela. Ao fazer isso, de certa maneira, a organização cria laços e vínculos que, futuramente, abrirão a possibilidade de uma atuação em colaboração.
Outra coisa fundamental é as organizações terem clareza do que cada uma está fazendo e qual é a contribuição mais valiosa que cada uma pode trazer. Olhando para a Amazônia, por exemplo, seria identificar quais organizações estão trabalhando contra o garimpo ilegal, quais estão combatendo o desmatamento, quais estão fazendo um trabalho de certificação, etc. Quando conseguimos visualizar aquilo que cada organização faz, fica mais fácil descobrir quais são as possibilidades de maior troca e colaboração entre elas e também conclamar umas às outras naquilo que for uma lacuna muito importante para a teoria da mudança.
Pacto: Uma evidência bastante debatida no atual cenário é a necessidade de uma aproximação cada vez maior entre os setores no desenvolvimento de soluções inovadoras para a construção de políticas públicas mais eficientes. A partir da experiência da Pacto com o setor público, que desafios você destacaria que precisam ser enfrentados para essa convergência, a fim de gerar impactos sociais mais transformadores?
Sergio: Pegando um exemplo concreto, nós trabalhamos com organizações da sociedade civil para o desenho de uma iniciativa que tinha a intenção de mobilizar tanto organizações da sociedade civil, quanto setores produtivos e o governo, em torno dos desafios para tornar o Brasil um emissor zero de carbono. Sem dúvida nenhuma é muito importante ter os diversos setores implicados numa construção como essa e eles precisam se ver como parte do problema para cocriar as soluções.
Esse é um desafio enorme, principalmente no mundo polarizado em que vivemos hoje. Você imagina colocar ambientalistas e ruralistas na mesma coalizão em busca de fazer do país um emissor zero de carbono?
O papel do setor público é de mediador da sociedade. Em um Brasil onde você tem ambientalistas querendo mais conservacionismo e uma agricultura sustentável e o agro, por exemplo, querendo exportar e produzir em larga escala, quem você prioriza? Como estabelece um diálogo que possa gerar uma relação de ganha-ganha?
Pacto: Quais são os principais desafios para a implementação desse amplo diálogo?
Sergio: Um desafio é realizar fóruns, conselhos, câmaras técnicas para dialogar com os diversos atores para a produção de políticas públicas convergentes com grande parte dos interesses que estão colocados. Ele nunca vai conseguir atender a todos os interesses, mas, se for um governo que busca garantir os direitos humanos e a saúde do planeta, é muito importante que promova esse diálogo e, obviamente, que se imponha enquanto instância legitimada pelo voto, no sentido de sinalizar pela garantia dos princípios e valores democráticos e de cuidado com as pessoas, a economia, a ecologia, ou seja, do modo que não temos visto com o governo atual.
Eu também percebo no governo um desafio de priorização desse tipo de atividade com a locação de times que façam esse diálogo com a sociedade. Com um Estado reduzido, uma equipe pequena – como por exemplo, o IBAMA [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], que praticamente não tem capacidade para a fiscalização necessária -, é muito desafiador alocar energia para atividades de mediação, de formulação de políticas, de diálogo com a academia para buscar dados e evidências científicas para construção das políticas públicas.
Não adianta colocar ambientalistas e ruralistas para conversar sobre o que cada um acha sem considerar a realidade, o nível de desmatamento, a produção econômica na região, os dados do Censo, enfim, informações concretas que subsidiem a tomada de decisão. O que temos visto, pelo contrário, é a inexistência disso, com um governo que vira as costas para os dados para atender à sua própria visão ou a interesses políticos.
Pacto: Se você pudesse enumerar algumas lições para o avanço da atuação das organizações por meio do trabalho em rede ou em colaboração, quais seriam? Quais são os principais caminhos a serem traçados pelas organizações que queiram atuar a partir de alianças e coalizões, em um processo de constante cocriação e diálogo?
Sergio: O primeiro é ter clareza dos impactos desejados e da teoria da mudança, da aposta para gerar transformações. O segundo é reconhecer quais são as potencialidades e capacidades instaladas dentro da rede para conseguir entender como cada organização pode contribuir com aquele mapa estratégico.
Lembrando que atuar em rede não significa atuar todo mundo junto o tempo inteiro. Vamos atuar juntos fazendo uma ação de advocacy junto ao poder público, por exemplo. Isso é o que eu chamo de nível 1, o topo da pirâmide. No nível 2, no meio da pirâmide, temos coligações entre algumas das organizações. São ações que podem ser realizadas por um conjunto menor de organizações daquela rede ou coalizão e que não precisam do aval ou do envolvimento de todas. E temos as ações de nível três, na base da pirâmide, que são aquelas feitas pelos membros da rede de maneira individualizada. Assim, há várias possibilidades de intervenção por parte dessa rede.
Você pode me perguntar: mas se a base da pirâmide é composta por ações individualizadas, por que eu entendo isso como ações em rede? Porque o fato dessas organizações estarem em rede pode mudar sua forma de ler o cenário, as possibilidades de ação no mundo e mudar os rumos da sua própria ação individual ou, eventualmente, abrir uma oportunidade de intervenção a partir de uma necessidade evidenciada pela rede. Então, é uma nova ação que aconteceu em função de estarem em rede, mas é realizada por uma única organização. Ou seja, estar em rede amplia as possibilidades de intervenção de cada organização no mundo, mesmo que de maneira individualizada.
O terceiro caminho diz respeito à governança. Como vão ser tomadas as decisões? Quais serão as instâncias de interação e participação? Como se darão os fluxos de comunicação entre as organizações? Quem pode e quem não pode ser membro? Quais são as regras de entrada e saída dessa coalizão? Quem pode falar em nome da rede? Deve-se ou não falar em nome da rede? Esses acordos são fundamentais desde o início.
Também é essencial que as redes e alianças consigam ter rituais claros e distintos. Existem alguns necessários como espaços de conexão, interação e diálogo. Outros para tomada de decisão. Pode haver organizações distintas nesses espaços, mas é importante estabelecer a frequência e como serão conduzidos esses rituais, entendendo suas naturezas distintas, às vezes deliberativos, outras formativos, às vezes inspiracionais, ou de acompanhamento de resultados e entregas. Isso tudo precisa fazer parte do desenho de governança e estar na agenda de todas as organizações.
Ainda nesse ponto da governança, recomendamos que o processo decisório não seja por consenso, mas por consentimento. Na tomada de decisão por consentimento, a pergunta não é se está todo mundo de acordo, mas se alguém tem alguma objeção e, se sim, qual risco está sendo observado. Quando alguém traz uma objeção clara, isso contribui para que outras organizações enxerguem algo encoberto até então e para que isso seja integrado na proposta. É um método que leva o grupo a refletir sobre como redesenhar a proposta cuidando de determinado ponto importante, permitindo que as pessoas sejam escutadas e, ao mesmo tempo, que o processo seja mais ágil e a iniciativa possa avançar. É preciso cuidar desse ponto para a construção de relações de confiança, afinal, as organizações são feitas de pessoas e há uma série de sutilezas importantes a serem percebidas e lidas pelo conjunto.
Outro ponto fundamental da governança é algo que chamamos de backbone organization, termo utilizado para definir a organização que estrutura a rede. O que temos visto é que esse papel, muitas vezes, é rodiziado. Mas em alguns casos, ter uma organização ou grupo de pessoas contratado especificamente para essa função pode ser fundamental para a gestão e facilitação dos processos. Aqui entram também os instrumentos tecnológicos que permitirão uma visão ampla dos processos, andamento, resultados, em suma, toda a parte instrumental que ajudará a dar clareza do avanço da atuação em rede, para que todos se sintam informados e pertencentes.
Eu diria que é importante também evitar a tentação de criar um novo CNPJ. Nós precisamos mais de movimentos do que de instituições. Os desafios da porta para fora já são tão grandes que, se ficarmos presos nas questões burocráticas e institucionais, estaremos desperdiçando nossa energia e sendo ineficientes com o uso dos recursos.
Pacto: E o que é preciso para manter todos os membros da rede engajados?
Uma rede só vai fazer sentido se ela tiver uma relação clara de benefício e ganha-ganha para quem está participando. Então, é importante ter clareza sobre o que cada membro está aportando para a rede e o que está levando para si. E para isso acontecer é muito importante também que se estabeleçam vínculos entre as pessoas que fazem parte dessa rede. É recomendável que cada organização membro determine uma ou duas pessoas para terem a rede como parte de sua agenda de trabalho a fim de facilitar a criação desses vínculos e laços de confiança, tão fundamentais para a vida da rede.
Atuar em rede também exige um certo desapego institucional e um desprendimento das nossas próprias verdades, uma abertura para aprender a partir de outras perspectivas com a possibilidade de construir um espaço seguro onde as organizações possam colocar suas vulnerabilidades, dizer que não sabem ou reconhecer erros. Isso é algo essencial para a constituição de estratégias de impacto.
Pacto: E em relação aos recursos financeiros? Qual é a importância, os desafios e as oportunidades para o financiamento da atuação em rede?
Até agora eu não falei de dinheiro e isso é sintomático porque eu percebo que só mais recentemente os financiadores do campo socioambiental começaram a olhar para a importância das redes e alianças e é fundamental que o recurso financeiro esteja energizando essas iniciativas. Esses financiadores têm um papel essencial de pensar um financiamento que não gere tanta competição. Muitas vezes, o que percebemos são organizações não tão abertas nesses espaços em rede porque, em alguma medida, elas disputam os mesmos recursos, dos mesmos financiadores. Então, se os financiadores conseguirem alterar um pouco seu mecanismo de financiamento, colocando os recursos a serviço da aliança, em vez de cada organização, pode ser muito mais efetivo para os resultados do campo como um todo.