“O Brasil é muito diferente em cada pedaço de sua extensão territorial e isso requer que as políticas públicas dialoguem com essas diversas realidades. O Estado é um ente multifacetado: existem órgãos dos governos federal, estaduais e municipais, com características próprias, que se manifestam de uma maneira peculiar em cada parte do país e com capacidades institucionais distintas.”
A reflexão é de Cristina Kiomi Mori, a Kiki, sócia da Pacto. Com uma bagagem de mais de doze anos atuando em governos – dez dos quais no governo federal e o restante na Prefeitura de São Paulo, onde conduziu agendas transversais de modernização da gestão e também políticas públicas finalísticas -, Kiki vê como fundamental a colaboração entre todos os segmentos da sociedade na resolução dos desafios sociais e econômicos do país.
“As desigualdades sociais e o racismo são questões interseccionadas com os desafios econômicos e territoriais”, observa.
Com base na experiência da Pacto no apoio à gestão e às políticas públicas, Kiki destaca desafios e oportunidades para um maior impacto positivo da atuação de diferentes agentes na vida das pessoas, sobretudo dos grupos em situação de maior vulnerabilidade.
Confira a entrevista completa.
Pacto: A partir da experiência da Pacto no apoio à gestão pública, que desafios você destacaria que precisam ser superados para a efetividade e impacto positivo das políticas públicas de modo geral?
Kiki: Acredito que o desafio constante é aperfeiçoar a capacidade de gestão do Estado, ou seja, a capacidade institucional dos governos de planejar, gerir esse planejamento de modo dinâmico e responsivo às realidades e, ao mesmo tempo, com um olhar sistêmico e integrado, levando em consideração os diferentes aspectos de uma política setorial que afetam outras e vice-versa. Esse desenvolvimento para a efetiva qualidade das políticas públicas em atendimento aos direitos de todos e todas previstos na Constituição é o que a gente busca apoiar nos trabalhos da Pacto, entendendo que isso vai gerar transformação.
Outra parte importante é a capacidade da sociedade de dialogar com as políticas públicas a partir da compreensão do que elas significam, de olhares específicos sobre pontos que podem estar fugindo do setor público em função da complexidade dos problemas. A orquestração dos diferentes atores envolvidos em uma temática é fundamental para o avanço no enfrentamento dos problemas.
Pacto: Que atores ou segmentos da sociedade são fundamentais nessa interface com o setor público para responder às demandas sociais, econômicas e ambientais de nosso tempo?
Kiki: A resolução dos problemas públicos requer a colaboração entre o conjunto de atores sociais em sentido amplo. Estou falando das organizações da sociedade civil que, de diferentes formas, atuam para influenciar as políticas públicas ou para apoiar sua implementação; e das empresas dos diversos segmentos, não apenas naquilo que precisam cumprir do ponto de vista da legislação, mas também no que podem fazer para ajudar na superação de desafios ambientais e sociais resultantes, muitas vezes, de sua atividade produtiva. Quanto mais engajados e cientes de seu papel na resolução dos problemas públicos esses atores estiverem, mais fácil será caminharmos em direção à superação desses problemas.
Também é importante que compreendamos que nem sempre as políticas públicas de atenção direta à população serão o principal motor da mudança, considerando que temos corporações muito mais poderosas do que os governos. Então, para cada desafio da agenda pública, é necessário olhar para o ecossistema daquela questão específica, para o conjunto de organizações e públicos de interesse envolvidos. Para perceber e lidar com a complexidade dos problemas públicos, é cada vez mais importante a capacidade de diálogo, articulação e coordenação desses diferentes atores.
Pacto: Quais aprendizados você poderia compartilhar com essas organizações e atores para uma atuação conjunta mais efetiva com as políticas públicas?
Kiki: Olhamos para essas organizações, sejam elas públicas, da sociedade civil ou empresas, cada qual ocupando um papel nesse grande ecossistema, fazendo uma analogia com a ecologia. Os sistemas humanos e sociais são sistemas vivos. O olhar para o que existe de específico no papel de cada um desses atores e de qual é a melhor contribuição que cada um pode dar para a superação do problema público em questão é algo que está muito presente na atuação da Pacto, seja quando atuamos com governos, com organizações da sociedade civil ou com empresas. Buscamos ter esse olhar mais sistêmico e também para como a governança e fluxos melhores de gestão de processos entre esses atores podem gerar as transformações de que precisamos.
Em geral, a resolução dos problemas requer que as próprias pessoas envolvidas transformem a sua forma de atuar para que o problema possa ir para um outro nível de compreensão. Então, poder propiciar ambientes favoráveis a esse reconhecimento e essa troca entre os atores é algo que nos move e tem sido bastante presente nas nossas práticas. Seja quando estamos apoiando a estruturação da gestão estratégica de um órgão público ou de uma política pública intersetorial, seja quando estamos apoiando organizações da sociedade civil a se coordenar e articular com atores públicos ou quando fazemos planejamento, avaliação e monitoramento da atuação de organizações da sociedade civil em parceria com o poder público, estamos sempre buscando esse olhar sistêmico.
Além disso, também buscamos apoiar as capacidades institucionais de cada um desses atores individualmente porque para entregar da melhor forma as estratégias necessárias para essa transformação, cada integrante desse ecossistema também precisa estar forte em si. Então, um governo precisa ter a sua capacidade institucional fortalecida, uma organização da sociedade civil precisa estar robusta para poder atuar conjuntamente com outras sabendo qual é o seu lugar e a fortaleza que ela tem, para poder colocar isso à disposição para o conjunto do ecossistema. Ou seja, ao atuar com esse conjunto de atores, não perdemos o olhar para cada organização individualmente.
Pacto: Se você pudesse citar um ou mais cases que podem inspirar uma atuação nessa direção, quais seriam e o que eles têm para ensinar?
Kiki: Gostaria de mencionar dois cases que considero interessantes. Nós temos atuado bastante na agenda da primeira infância, da promoção de políticas públicas integrais e integradas para o desenvolvimento das crianças de zero a seis anos, entendendo esse período da vida como de essencial atenção da sociedade por influenciar muito o restante da vida das pessoas.
Começamos a atuar nessa agenda a partir do apoio a uma organização muito importante nessa temática que é a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, que atua em parceria com outras organizações, ou seja, que já se vê como um dos atores desse ecossistema, fazendo parcerias com a Porticus, com a Fundação Bernard van Leer, com a Rede Nacional para Primeira Infância (RNPI), entre muitas outras. Um conjunto importante de atores com quem a Fundação faz parcerias, sobretudo muitos atores governamentais.
Apoiamos o planejamento de um programa estadual de primeira infância no Ceará, que resultou em novas ações e no levantamento de boas práticas de implementação de políticas públicas baseadas em evidências. Para implementar essas políticas, o governo do estado do Ceará atua em regime de colaboração com municípios, ou seja, estrutura-se também uma governança para apoiar a primeira infância no âmbito dos municípios para que o diálogo entre o estado e o município possa fluir e a implementação dessas iniciativas possa acontecer.
Esse é um exemplo de como esse conjunto de atores vai se articulando e construindo uma visão comum para alcançar um objetivo, as diferentes estratégias necessárias para que essa visão se torne realidade e como cada ator desse ecossistema tem um papel relevante. A Pacto apoiou o planejamento das ações e hoje segue apoiando a gestão desse plano, o acompanhamento dessa ação articulada. Fazemos também estudos sobre governança e apoiamos municípios em diferentes níveis de maturidade nesse tipo de processo, a partir de parcerias com diferentes organizações do campo.
Como um segundo caso importante, eu mencionaria nossa atuação para apoiar a melhoria da gestão de pessoas no setor público brasileiro. Fazemos parte do Movimento Pessoas à Frente, uma coalizão que nasceu da proposição de quatro organizações (Fundação Lemann, Instituto Humanize, República.org e Fundação Brava). Fizemos um trabalho interessante de sistematização das experiências que foram implementadas em sete estados brasileiros de atração e seleção de lideranças com base em perfis e competências e que envolveu diálogo com atores desses sete governos estaduais, tanto das suas lideranças, como das pessoas envolvidas na execução dos processos seletivos e com as equipes responsáveis pela implementação dessa iniciativa, além dos especialistas mobilizados para apoiar a implementação nos estados.
Disso decorreu um trabalho muito interessante de diálogo com os estados e apoio para sistematização de um guia para atração e seleção de lideranças, que foi elaborado a muitas mãos, com envolvimento de representantes de governos estaduais, não só desses sete estados, mas dos que fazem parte do Conselho Nacional dos Secretários de Administração e Gestão (CONSAD). A Pacto, por ter construído essa capacidade de olhar para a gestão de pessoas no setor público, apoiou tecnicamente a revisão desse guia, que hoje está disponível para que lideranças públicas em qualquer lugar do país possam se inspirar e implementar.
Dessa experiência vieram outros trabalhos, como, por exemplo, estruturar um roadmap para a melhoria da gestão de pessoas no setor público brasileiro, considerando uma visão estratégica. Esse material já está pronto e começando a ser usado para falar de gestão do desempenho, gestão por competências, da vinculação da gestão de pessoas com a estratégia dos governos, dos desafios que estão por trás da promoção de políticas de gestão de lideranças e dialoga com esse ecossistema maior de atores que tem buscado colocar essa pauta na agenda pública brasileira e, com isso, fortalecer a capacidade do Estado de entregar melhores políticas públicas.